quarta-feira, 26 de agosto de 2009

quando a lua chegar na sétima casa.

o tempo cabe dentro de um relógio.

(entra Ofélia. seu coração é um relógio. entra Ofélia. a mulher das veias cortadas. a mulher com a cabeça no fogão à gás.)

Ontem deixei de me matar.

(entra a atriz que interpreta Ofélia. a atriz que interpreta Ofélia canta. embora todos sempre digam que a atriz que interpreta Ofélia não deveria mais cantar. a atriz que interpreta Ofélia aceita o pacto. faz braços de ballet e anda pela rua XV.)

Dorme minha pequena não vale a pena despertar.

(entra a outra atriz que interpreta Ofélia.)

Aqui quem fala é Elektra.

(entra a outra atriz que interpreta Ofélia. a outra atriz que interpreta Ofélia propõe um alongamento.)

Eu sou Ofélia, aquela que o rio não conservou. Saio para a rua, vestida em meu sangue.

Num tempo, que agora já é tão passado, tudo isso significou tanto mais. Agora apenas isso. Uma obra incompleta de um autor que em breve completa quinze anos de morte. Num tempo tão passado isso tudo significava amor. Hoje não. Hoje não teceremos as bênçãos mais sagradas. Naqueles dias talvez. E Deus, se é que ele existe, hoje chorou uma única lágrima. Hoje resta apenas a burocracia. E vamos em frente. Porque o amor se tornou algo supérfluo.

Dormir, talvez sonhar. O resto é silêncio.

Houve um tempo em que você me amou. Eu te amei o tempo todo.

(a atriz chora. Ofélia permanece muda. estática. pose de ballet.)

Existe, realmente, muito a ser dito. No entanto, o que já existe é tanto mais forte.

(eu peço desculpas na didascália. desculpa?)

o tempo destrói tudo. sim. o tempo destrói. e na ausência de qualquer coisa. não sobra. restam os escombros de uma nova dinamarca. restam os escombros do relógio. escombros e cadáveres e peixes e pedaços de cadáveres. eu plantei um girassol. restam os escombros do relógio. Ofélia, o seu coração é um relógio. o seu coração é tijolo. mas ele bate por você. o meu coração é puro. o rio de janeiro em maio. a revolução cubana. o porquinho da índia. a procura da poesia. um relógio. preso a uma banana de dinamite. um relógio que marca o tempo que falta para um explosão. novo big bang. um relógio, um tijolo, um girassol. um tempo outro. meu coração é um sapo ou um baicau. uma coisa que pulsa. mas por aqui a gente gosta de dizer que ele bate. bate por quem? só você não percebeu. meu coração/bomba-relógio em cena. meu coração/bomba-relógio nas tuas mãos. meu tijolo/coração aos teus pés. me dá um cigarro? me dá uma chance? me concede essa dança e junto com ela todo o teu passado? não. meu coração é um relógio. ponteiros quebrados. marcando sempre a mesma hora. um sapo ou um baiacu. aos meus pés. tijolos e concreto e coisas que erguem cidades e muros de silêncio. meu coração teu. não. nunca mais. meu coração/tijolo/sapo/baiacu/bomba-relógio/relógio parado.

e assim. acaba.

(Ofélia sai de cena. sem sangue. sem vísceras. sem coração.)

piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii